segunda-feira, abril 16, 2007

Prematuro em 2007

Às vezes fica-se um grande tempo sem nada de novo por aí, às vezes tudo acontece de uma só vez e pronto. Não que tudo de 2007 já tenha acontecido até agora, abril. Mas é raro aparecerem em tão pouco tempo dois belos livros de poemas. Logo assim, um juntinho do outro. O primeiro apareceu logo em janeiro e em Portugal. Dezanove maneiras de fazer a mesma pergunta é o sétimo livro de Carlos Bessa, novo poeta português que conheci a partir da tão discutida antologia Poetas sem Qualidades. O livro não é tão diferente dos, pelo menos, últimos dois livros de Bessa, publicados em 2003 e 2004: Em trânsito e Em partes iguais. A temática me parece a mesma, o que mudou talvez tenha sido seu alcance. A ironia, que aqui nem sempre e curiosamente parece ironia, ganha outros tons. Bessa é dono de um tipo de fala interessantíssima, quase natural, difícil de se encontrar e por isso mesmo muito especial, há em seus poemas uma familiaridade quase estranha. O outro livro foi publicado em março agora e por aqui mesmo. Seu autor, Régis Bonvicino, desde a década de setenta já conta alguns livros. Muitos, bons, mas nenhum, sem dúvida, grande como este novo: Página órfã. Pois, me parece se tratar de um grande livro, como há algum tempo não se vê por aí. Muitas são as razões para isso, mas a principal delas talvez seja a mais simples: o livro tem belíssimos poemas. Para além disso ou mesmo por isso, estão lá a consciência formal (mas que consegue muito bem falar mais baixo que o poema) e o contato sem afetação com as coisas do dia-a-dia. O livro de Bonvicino, como o de Bessa, também tem um forte acento irônico. Mas, enquanto no livro de Bessa a coisa tende para um fino desencantamento que seria melancólico se não fosse tão cínico, no livro de Régis, a coisa é mais acintosa. Nesse sentido o livro é mais violento. Porque sua ironia é mais imediata sem ser imediatista. Com isso, sua forma é muito contemporânea de seu fundo: estão lá pauladas e mendigos, carros novos e modelos velhas.
Mas é isso. Impressões são impressões, ainda mais quando são rápidas e de viagem. Dois livros especiais. Fica aqui o convite -- retirado dos últimos dois versos na primeira das dezenoves maneiras de fazer a mesma pergunta de Carlos Bessa -- “Entrem, entrem, senhoras e senhores. / Entrem e sejam bem vindos ao meu bando”.



Interior
Carlos Bessa

Porque não dorme e precisa urgentemente
de dessedentar os nervos, entra no café
e pede um pouco de amor. Ninguém estranha
o pedido. Servem-lho quente, com açúcar
e colher, para que ao mexê-lo envolva
a dor no fio de aroma que os experts
bem conhecem, sobretudo os que medem
as oscilações entre espasmos e aforismos.
Espera. E sente, a cada minuto, o trabalho
alquímico que o seu coração debita,
onde, ao chumbo, se junta o doce e viscoso
líquido que a uns dá tudo e a outros
enche de angústia. Recorda. Pensa. Fuma.
Adormece. Que sono profundo. Shh, não
façam barulho. Suspendamos o juízo.
A vida tem momentos assim, saturados
de ouro e cafeína.


Caminho de hamster
Régis Bonvicino

Fedendo a cigarro e a mim mesmo
cruzo uma avenida
ao anoitecer
sirenes, carros

vozes abafadas
avenida larga e áspera
numa rua transversal
o cadáver de um cachorro

atropelado
rodas metálicas em ritmo lento
fedendo a esgoto e a mim mesmo
a um pouco de fogo, do isqueiro

fedendo como aquela maçã podre
fedendo a música estúpida
desses tempos
e a mim mesmo

o lixo recolhido exala
um cheiro nítido na calçada
fedendo a sapatos e a mim mesmo
a ratos, ao suor dos néons

a cadeiras e a mim mesmo
a notícias inúteis e a mim mesmo
fedendo sob a lua
narinas entupidas de gás carbônico

o som do motor do ônibus
fedendo as mesmas camisas
fedendo a miopia e a mim mesmo
fedendo a esquinas

exalando cheiros
fedendo a expectativas
que no entanto acabam
na próxima linha



***


Gosto de muitas coisas nestes dois poemas. Mas gosto mesmo da conversa secreta, cada qual ao seu jeito, que parecem fazer com outros. Assim que li o poema do Bonvicino, reparei na lentidão das rodas e achei muito bom aquelas cadeiras ali perdidas no poema sem ninguém. Mas o que me deixa mais feliz são aquelas camisas, fedendo entre a denotação do motor de ônibus e a metáfora da miopia. Acho ótimo ver essa camisa como da mesma grife que aquela que o Cabral quer tirar, não? Em Interior, gosto do ouro no final do poema. Há algo de estranho, ainda mais ali junto da cafeína. Adoro também a calma quase carinhosa com que vemos as coisas acontecerem no poema. E ninguém me tira da cabeça que esse texto é uma homenagem e uma tiração de sarro (em muitos sentidos) com o incrível poema de camilo pessanha, Na cadeia os bandido presos, mais velho que este 100 anos.


Leonardo Gandolfi
16h, 16-4-7


1 Comments:

At 23.4.07, Anonymous Anônimo said...

"[Baudelaire] ensinou-nos que uma atitude elegante se pode conciliar com uma grande franqueza de expressão".

Apollinaire em introdução a 'Fleurs du Mal' [tradução minha].

 

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