quarta-feira, janeiro 31, 2007

fiama hasse pais brandão
1938-2007


Canto dos epitáfios (Dia de Finados de 1993)

Todos os dias são dias de finados,
dias dos epitáfios e rosas e crisântemos.
Cada dia as palavras votivas
são apenas uma asserção sobre o vivo.
Contemplo a minha laje talhada inscrita
levada pelo amor da epigrafia
e vejo que sob o nome que fora antes
deixaram linhas de uma mensagem vã.
Todas as palavras são dos mortos
que, avaros, no-las guardam há séculos,
falamos porque os mortos nos falavam
e os livros fizeram-se à imagem do Livro.
É belo ler o que não é, na pedra,
as datas que alongam a cadeia
que nos amarra fugazmente ao Tempo.
Não ser e não estar é o que dizem
as palavras nas línguas de Babel
deixadas escritas em todas as campas.
Também os mortos nos legam a onomástica
e a todos o grande Nome dá o Verbo
para denominar segundo a tribo.
Louvemos o Canteiro que tem a arte
de escavar as palavras no vazio
através dos séculos até mim,
que aceito o nome que me for gravado.
Ao meio-dia do dia de finados
a pedra arde como se fosse estio
e o clarão que aflora as lajes
lembra-nos a matéria e as erupções solares.
Quantos já ascenderam ao Sol,
dos povoadores, peregrinos, filhos terrestres,
e quantas rosas os seguiram no espaço,
destas que o amor humano colocou
e que o amor entre os astros nos retira.
E quantas vezes o Sol por compaixão
nos devolve a nós mesmos os seus protões.


[cantos do canto, relógio d'água, 1995

quarta-feira, janeiro 17, 2007

Rasputine

A última vez que te vi
andavas a ler a vida de Rasputine,

a última vez que te vi
atribuías muita coisa ao hipnotismo e ao desejo
de morrer,

a última vez que te vi
falavas sabendo que as palavras não chegavam
até mim, aves migratórias sem verão,

a última vez que te vi
tinha os olhos no chão mesmo quando os levantavas,

a última vez que te vi
deste a entender que a maturidade antecede vinte
e quatro horas a desilusão,

a última vez que te vi
deixaste comida no prato,

a última vez que te vi
não chegavas a ter pena de Nicolau e Alexandra,

a última vez que te vi
pensavas que era muito mau gostarmos
das mesmas canções,

a última vez que te vi
dizias que as fotografias
nas gavetas estavam agora mais tristes
do que quando foram tiradas,

a última vez que te vi
já não pensavas em crueldades e polaroids
mas em viajar tão natural e precariamente como os outros
na pequeníssima dimensão da eternidade,

a última vez que te vi
foi a última vez.

[pedro mexia
[avalanche, quasi, 2001

sexta-feira, janeiro 12, 2007

- Down the highway?
- Down by the river.

quarta-feira, janeiro 10, 2007

Às vezes penso: o lugar é tremendo



Incübus


Aquele que mata decifra.
Está sobre o crime
como quem maneja deus.

*

Consideremos o crime:
o modo como a navalha dele extrai
a própria mutação.
Porque todo objecto aspira
a exceder a sua exatidão. A devir.

*

Por vezes estou sobre as facas como quem intenta.
Outras é o metal que reverbera onde enlouqueço.

Sei que o crime encerra a sua própria geometria:
o golpe incide onde o erro é um refração.

Abro na lâmina uma veia para correr.

*

Um nervo arrebatado à exactidão.
Sobre ele edifico o método.
Há o propósito e o axioma implícito:
a queda não é interceptável.

Chega-se ao crime pelo exercício da evidência.

[jorge melícias
[incübus, quasi, 2004

domingo, janeiro 07, 2007

mitos

Às vezes dói. Às vezes nem por isso.
Uns gramas de alegria fácil, o lume
com que outrora as fábulas contavam
o mundo, expunham a dor a revolta
o ridículo. A vasta armadura
da linguagem rebuscada com que se
moldava o arame farpado da culpa.
As manobras de quem não desiste nem
deixa que a razão fique nas mãos bem
remuneradas de especialistas.
Porque gosta do circo, que a sua dor
seja reciclada e transformada em lucro.
Livres para o aborrecimento de
vacilar contra quantos se intrometem no
caminho e que transformariam em
cinza, acaso tudo fosse simples como
as contas da sabedoria. Capazes
de recusar água ao mais esfaimado,
pois sabem que todos somos débeis na
fortaleza da sedução, da hipo-
crisia e sinismo. Na das lágrimas,
sempre que foi preciso. Aprende-se muito
com os mais resistentes, aliam-se
temerosos com os piores inimigos,
bebem do desprezo com afinco e chega
a hora de toda a água suja a que
chamam história, o canto da sua vida.

[carlos bessa
[em partes iguais, 2004

quarta-feira, janeiro 03, 2007

Amizade e depois silêncio

Sem drama, antecipação ou mágoa,
os amigos retiram-se apressadamente.
Uma certa lei da gravidade
acolhe-os em seu centro.
Sem palavras apagam-se as palavras:
dedicatórias são rasuradas,
poemas eclipsam-se em anónimas leituras.

Sem convénios de sangue,
os poemas são artefactos
onde a frieza é oclusa mão
que impiedosa os desvela.

[luís quintais
[angst, 2002