sábado, abril 28, 2007

Invenção do nada

Não reparei
enquanto aqui escrevia
que nada resta do mundo
excepto a minha mesa e a cadeira.

E por isso disse:
(por que raio, para abusar da paciência)
É esta a taberna
sem um copo, vinho ou criado
onde sou o bêbado que há muito esperam?

A cor de nada é azul.
Eu bato-lhe com a mão esquerda e a mão desaparece.
Então porque estou tão sossegado
e tão feliz?

Eu subo para a mesa
(a cadeira já desapareceu)
eu canto pelo gargalo
de uma garrafa de cerveja vazia.

[charles simic
trad. josé alberto oliveira

sexta-feira, abril 27, 2007


quarta-feira, abril 18, 2007


Jean Seberg e Belmondo, Acossado

segunda-feira, abril 16, 2007

Prematuro em 2007

Às vezes fica-se um grande tempo sem nada de novo por aí, às vezes tudo acontece de uma só vez e pronto. Não que tudo de 2007 já tenha acontecido até agora, abril. Mas é raro aparecerem em tão pouco tempo dois belos livros de poemas. Logo assim, um juntinho do outro. O primeiro apareceu logo em janeiro e em Portugal. Dezanove maneiras de fazer a mesma pergunta é o sétimo livro de Carlos Bessa, novo poeta português que conheci a partir da tão discutida antologia Poetas sem Qualidades. O livro não é tão diferente dos, pelo menos, últimos dois livros de Bessa, publicados em 2003 e 2004: Em trânsito e Em partes iguais. A temática me parece a mesma, o que mudou talvez tenha sido seu alcance. A ironia, que aqui nem sempre e curiosamente parece ironia, ganha outros tons. Bessa é dono de um tipo de fala interessantíssima, quase natural, difícil de se encontrar e por isso mesmo muito especial, há em seus poemas uma familiaridade quase estranha. O outro livro foi publicado em março agora e por aqui mesmo. Seu autor, Régis Bonvicino, desde a década de setenta já conta alguns livros. Muitos, bons, mas nenhum, sem dúvida, grande como este novo: Página órfã. Pois, me parece se tratar de um grande livro, como há algum tempo não se vê por aí. Muitas são as razões para isso, mas a principal delas talvez seja a mais simples: o livro tem belíssimos poemas. Para além disso ou mesmo por isso, estão lá a consciência formal (mas que consegue muito bem falar mais baixo que o poema) e o contato sem afetação com as coisas do dia-a-dia. O livro de Bonvicino, como o de Bessa, também tem um forte acento irônico. Mas, enquanto no livro de Bessa a coisa tende para um fino desencantamento que seria melancólico se não fosse tão cínico, no livro de Régis, a coisa é mais acintosa. Nesse sentido o livro é mais violento. Porque sua ironia é mais imediata sem ser imediatista. Com isso, sua forma é muito contemporânea de seu fundo: estão lá pauladas e mendigos, carros novos e modelos velhas.
Mas é isso. Impressões são impressões, ainda mais quando são rápidas e de viagem. Dois livros especiais. Fica aqui o convite -- retirado dos últimos dois versos na primeira das dezenoves maneiras de fazer a mesma pergunta de Carlos Bessa -- “Entrem, entrem, senhoras e senhores. / Entrem e sejam bem vindos ao meu bando”.



Interior
Carlos Bessa

Porque não dorme e precisa urgentemente
de dessedentar os nervos, entra no café
e pede um pouco de amor. Ninguém estranha
o pedido. Servem-lho quente, com açúcar
e colher, para que ao mexê-lo envolva
a dor no fio de aroma que os experts
bem conhecem, sobretudo os que medem
as oscilações entre espasmos e aforismos.
Espera. E sente, a cada minuto, o trabalho
alquímico que o seu coração debita,
onde, ao chumbo, se junta o doce e viscoso
líquido que a uns dá tudo e a outros
enche de angústia. Recorda. Pensa. Fuma.
Adormece. Que sono profundo. Shh, não
façam barulho. Suspendamos o juízo.
A vida tem momentos assim, saturados
de ouro e cafeína.


Caminho de hamster
Régis Bonvicino

Fedendo a cigarro e a mim mesmo
cruzo uma avenida
ao anoitecer
sirenes, carros

vozes abafadas
avenida larga e áspera
numa rua transversal
o cadáver de um cachorro

atropelado
rodas metálicas em ritmo lento
fedendo a esgoto e a mim mesmo
a um pouco de fogo, do isqueiro

fedendo como aquela maçã podre
fedendo a música estúpida
desses tempos
e a mim mesmo

o lixo recolhido exala
um cheiro nítido na calçada
fedendo a sapatos e a mim mesmo
a ratos, ao suor dos néons

a cadeiras e a mim mesmo
a notícias inúteis e a mim mesmo
fedendo sob a lua
narinas entupidas de gás carbônico

o som do motor do ônibus
fedendo as mesmas camisas
fedendo a miopia e a mim mesmo
fedendo a esquinas

exalando cheiros
fedendo a expectativas
que no entanto acabam
na próxima linha



***


Gosto de muitas coisas nestes dois poemas. Mas gosto mesmo da conversa secreta, cada qual ao seu jeito, que parecem fazer com outros. Assim que li o poema do Bonvicino, reparei na lentidão das rodas e achei muito bom aquelas cadeiras ali perdidas no poema sem ninguém. Mas o que me deixa mais feliz são aquelas camisas, fedendo entre a denotação do motor de ônibus e a metáfora da miopia. Acho ótimo ver essa camisa como da mesma grife que aquela que o Cabral quer tirar, não? Em Interior, gosto do ouro no final do poema. Há algo de estranho, ainda mais ali junto da cafeína. Adoro também a calma quase carinhosa com que vemos as coisas acontecerem no poema. E ninguém me tira da cabeça que esse texto é uma homenagem e uma tiração de sarro (em muitos sentidos) com o incrível poema de camilo pessanha, Na cadeia os bandido presos, mais velho que este 100 anos.


Leonardo Gandolfi
16h, 16-4-7


sábado, abril 14, 2007

The weird sister 02

apenas duas balas no revólver
seremos como dois olhos vendados
mas ímpares
palavra por palavra


The weird sister 06

meus pais foram morrendo pouco a pouco
primeiro um depois um outro
e outro e outro e outro

:
maurício matos
aquém das retinas, 2006

histórias que nos interessam:
entre tantas, a de um falsificador
.
.
O orson welles em seu último
filme como diretor, f for fake
Dois títulos em tradução:
f de fraude ou verdades e mentiras


(...) o fantasma não consiste em ouvir tudo (qualquer coisa) mas em ouvir outra coisa



Barthes ao falar do encanto da ambigüidade
em contraste com a polissemia
em Roland Barthes por Roland Barthes,
trad. Leyla Perrone-Moises

sexta-feira, abril 13, 2007

Enterraremos tudo,
os braços, o movimento e a pá,
a paixão de sexta-feira,
a bandeira de andar sós,
a pobreza, essa dívida,
a riqueza, essa outra.

Enterraremos tudo até com sabedoria,
cortando sabiamente os pedaços,
ou cortando-os sem nos darmos conta, sabiamente.

Um resto de olhar
ficará flutuando como um pincel absurdo
sobre a trégua duplamente fiel de tudo ausente.
E menos mal que não haverá ninguém
para escavar logo bem fundo
e descobrir que não há nada enterrado.

roberto juarroz, trad. arnaldo saraiva
poesia vertical, campo das letras, 1998

O disco da vez, Orphans
tom waits

O tempo do cabelo não é o tempo do homem,
o tempo das tuas mãos gira noutro sentido,
eu não tenho mais tempo do que nunca foi tempo
e o futuro é uma cruz no dorso
dos que ainda têm dorso.
Amanhã viajaremos até ao ontem nu
como um zero a uma cifra.
Amanhã vou instalar-me em tua voz,
sobre um tempo distinto
do tempo que percorre as palavras.
Amanhã habitaremos
a absoluta coincidência sobre um ponto
do começo ao fim
do que não era um ponto,
mas o tempo de um ponto.
Só um zero é distinto de outro zero
e algo começa a contar tudo de novo a partir dessa diferença.

Há um tempo do olho
que deixa de olhar para trás ou para diante
e se detém em si mesmo.
E há um tempo do tempo,
do encontro do tempo com o tempo,
um transcorrer já sem testemunhos,
uma duração duração.

O ponto é o resumo.
É necessário vigiar o ponto.
Sobretudo este ponto final.
Ou talvez o que segue.

roberto juarroz,
trad. arnaldo saraiva