sábado, junho 30, 2007

Saul Bass #2


Antologia

De todos os escravos, o califa
preferia sempre aquele a quem prendera
ao tempo numa corrente impossível.
Conhecedor do instante, a luz conforme
dava início ao recontar, à ampulheta,
esse aquário com peixes sutis, pontos,
ouro lavrado numa simples síntese
do deserto ou o labirinto atroz.
Esse mesmo homem que nós saberíamos
pelo nome de Jorge Luis Borges,
além do sol, nessa hora inumerável.

Moacir Amâncio,
Contar a romã

sexta-feira, junho 29, 2007

Labial

Não há como dizer o que se sente.

Há porém quem consiga, dando
cambalhotas verbais, ou seja, usando
as propriedades elásticas da fala,
dar ao contrário do que pensa
uma formulação genial.

E é preciso atenção
para ouvir dos outros,
no meio dessa imensa balbúrdia
de suas falas acamadas em uma
comunicação casual ou soltas
nas molas de um desabafo,
a frase que a nós dirá respeito, a palavra
certa para orientar nossos passos.

Leonardo Fróes,
Chinês com sono seguido de
Clones do inglês

quinta-feira, junho 28, 2007

Extemporânea

hojes acuando
os depois e quandos
em bando

como passa o tempo!
o agora tempo-
rário o ontem pó

o pior momento
está sempre (memento
homo) indo embora

a hora? ora a hora...

José Paulo Paes,
Um por todos
(poesia reunida)

quarta-feira, junho 27, 2007

Cheguei. Tarde, talvez, mas não tarde demais.
Trazendo aquela tralha toda, parecida
com tudo aquilo que você tem, aliás.
Como era de se esperar. O forte da vida

não é a originalidade. Eu não me iludo.
Abre essa porta. Frente ou fundos, tanto faz.
Abre depressa, antes que desabe tudo.

Paulo Henriques Britto,
Tarde

terça-feira, junho 26, 2007

Saul Bass #1


Nada me faltará

Sou o que está atirando
e o que está morrendo.
Sou a arma, o tiro, o ferimento,
o parque em torno e o fotógrafo
-- que não se vê.

Sou as manchas, a exatidão dos sapatos,
a roupa de listas e estampados
e a decadência física.
Sou tudo que se disser, neste retrato:

uma humanidade implacável
que não consigo evitar;
palavra armando palavra,
a reação em cadeia

queimando o mar.

Mas o resto da página,
já não sou.
Tudo o mais se apaga ante a foto
de filho matando pai

e saindo de arma em punho,
ameaçador.
A página já não sou, depois da foto
que me lembra meu rebanho

e meu pastor

Jorge Wanderley,
Manias de agora

segunda-feira, junho 25, 2007

O hóspede

Que hóspede silencioso
recebeste em tua morada!
Usa teus lençóis e toalhas,
barbeia-se com teu creme
Não se arreda de ti.
Segue-te como um cão.
Arranchou em tua carne.
Ancorou em tuas lágrimas.
Vê que teus olhos
perderam o viço
e se mostra o olhar
maligno desse estranho.
Estão mais finos os teus lábios
e a boca curva-se para baixo.
Percebeste que os amigos
já se mostraram reticentes
quando se encontram contigo?
Este hópede
vem-te roubando
o riso, o humor, a memória.
Em morte dupla
vai acabar esta história.

Donizete Galvão,
Mundo mudo

domingo, junho 24, 2007

pequeno sutra da mais completa ignorância

não sei migrar para o sul quando chega o verão, nem caminhar sobre o carvão em brasa

carroças já não passam por minha boca

desconheço regras de retórica, o manejo de sombras, tipos exóticos de peixes, datas e aparatos de cerimônia

sei que tenho 32 dentes, leio livros e jornais, vou ao mercado e ao cinema, escuto música clássica e popular, e posso dizer de cor os números dos meus documentos, além de uns poucos poemas aprendidos há muito tempo

teimo também em me lembrar dos conselhos dos amigos, que permanecem vagando desacertados entre frases que de algum modo saltam prontas de minha garganta

não posso, apesar de grandes esforços, distinguir o fútil do necessário, o que me vale tantas horas misturando fadiga e prazer

nenhum balanço pode ser feito

apesar de meus olhos e meus pés se considerarem auto-suficientes na avaliação das distâncias, acabo sempre por tropeçar numa pessoa ou numa pedra

Caio Meira,
Coisas que o primeiro
cachorro na rua pode dizer

sábado, junho 23, 2007

Botas de borracha

Jatos de água cristalizam pétalas e azulejos, escorraçam bicos de pássaros. Sol matinal sobre o amarelo de luvas, botas e escovas que sodomizam piscina e jardim. Podar cachos de glicínias com longas tesouras que ensejam brilhos homicidas. Recolher folhas e gravetos, cólica e cólera com pá de lixo. Limpar as frestas das janelas. Correr a água sanitária no vaso, polir torneiras, desentupir o ralo. Porque não existe nenhum caminho, nenhum. Nem mesmo revólver ou corda de enforcado. Nada. Apenas galochas, a chave inglesa na laje, rugas, o pelame do cão siberiano para escovar.
2002

Claudio Daniel,
Figuras metálicas

sexta-feira, junho 22, 2007

Para Amônis, que morreu aos 29 anos, em 610

Rafael, pedem-te que componha alguns versos
para epitáfio do poeta Amônis.
Algo muito primoroso e bem articulado. Tu poderás,
és o indicado para escrever como convém
sobre o poeta Amônis, nosso poeta.

Certamente falarás de seus poemas --
mas fala também de sua beleza,
de sua delicada beleza que amamos.

Sempre belo e musical é teu grego.
Contudo tua mestria toda pretendemos agora.
À língua estrangeira vão passar nossa dor e nosso amor.
Lança teu sentimento egípcio na língua estrangeira.

Rafael, que teus versos sejam escritos de sorte
que tenham, sabes, algo de nossa vida dentro deles,
que o ritmo e cada frase mostrem
que sobre um alexandrino escreve um alexandrino.

K.Kaváfis
tradução_Ísis Borges da Fonseca

quarta-feira, junho 20, 2007

Poética para desanimar os leitores

Não digo nada que não tenha sido dito.
Não procures novidades no meu verso.
Amei sem ser amado, como tantos.
Fui jovem, como todos, sem sabê-lo.
Pedi à arte coisas que esqueci.
Apenas sei que nada me serviram.
Tive um tesouro nas mãos, tive
ouro e areia, luz e desconsolo.
Não procure novidades. O que digo
já tu o pensaste e outros o disseram
com palavras mais belas do que as minhas.
Apenas escrevo para matar o tempo.

José Luis García Martín
tradução_Joaquim Manuel Magalhães

quinta-feira, junho 14, 2007

Velório rico

O morto está sinistro e amortalhado
Rodeado de herdeiros inquietos como sombras
Que atormentam o ar com seus pecados

Sophia de Mello
de Breyner
Andressen,
Geografia, 1967

segunda-feira, junho 04, 2007

Sub Rosa


Palma da mão aberta, por cima da pele
deito esta queimadura que, como parece,
não doeu quase nada. Depois de uns minutos
e de outras tentativas menos eficazes,
acendo meu cigarro para que nada fuja
do controle. Você não precisa dizer
tudo, eu quero só o nome e pronto acaba.
O cigarro por isso começa a sumir
cauterizado sob a pressão da mistura
de rosa e roxo em sua bochecha, a esquerda.
Sim, a mesma que já cedera aos hematomas
da mesa onde depois iríamos prender
seus braços já sem força ou quem sabe quebrados.
Duvido que diga algo além dessas bobagens.
Só mais um pouco, já começamos, agora
é terminar. O que é isso, você ouviu?
Ouvi, acho que veio lá de fora. Não,
foi da cozinha, calma aí, eu volto já.
Tiro e coloco então sobre a mesa o revólver,
como das outras vezes, tenho pouco tempo.